OS SOLDADOS DA FORTUNA

05-03-2024


Muito se tem falado de mercenários nos últimos tempos.

Ultimamente do grupo Wagner Russo e do Regimento Azov Ucraniano, os dois fortemente envolvidos no conflito entre os dois países, mas também os tais "soldados da fortuna" foram notícia nos conflitos do Afeganistão e, em especial do Iraque, com o envolvimento da empresa Norte Americana Blackwater.

E, sempre que se fala de mercenários, dá-se, atualmente, um sentido pejorativo a esta profissão.

Mas, primeiro, o que é um mercenário?

Segundo a Wikipédia o termo "Mercenário (do latim mercenarius, de merce = comércio) é o nome pelo que é chamado aquele que trabalha por soldo ou pagamento. O termo designa, especificamente, os militares que lutam tendo como objetivo o pagamento ou a divisão dos despojos, sem ideais ou fidelidade a um Estado ou Nação."

Ora, o que poucas pessoas sabem é que os mercenários são utilizados desde a antiguidade, mantendo e travando quase todas as guerras e conflitos até ao século XVIII.

Porque até ao final do século XVIII os países não tinham exércitos regulares, tais como hoje os concebemos, mantidos em prontidão permanente, treinados, mantidos e armados pelo Estado e também mantidos por ele.

Os exércitos formavam-se quase espontaneamente quando havia conflitos, recorrendo às forças privadas dos nobres (alguns com obrigação de manter disponíveis essas forças), cidadãos e camponeses recrutados (normalmente à força), reclusos que queriam comutar as suas penas na luta ou nobres de segunda categoria que procuravam glória e fortuna.

Em tempos de paz eram mantidos apenas pequenos contingentes normalmente mais para proteção pessoal de monarcas e nobres do que para a defesa do Estado. Também pequenos contingentes guarneciam fortificações nas linhas de fronteira, mas também mais com objetivo de dar o alerta do que, de facto, encetar campanhas militares dignas desse nome.

Os conflitos também tinham outras características, outras regras e, fundamentalmente, outra "velocidade".

Quando os monarcas queriam, de facto, forças eficientes e devidamente treinadas, recorriam, como em tudo, a profissionais, isto é, aos mercenários, que lutavam por quem pagasse mais.

E isso não implicava falta de lealdade ou honra.

Um grupo de mercenários suíços protegeu até à morte, em 6 de maio de 1527, o Papa Júlio II de ser capturado por Carlos V que invadiu Roma. Ainda hoje é esse grupo de mercenários que protege e defende o Sumo Pontífice Romano, o Papa: a muito conhecida e "colorida" Pontifícia Guarda Suíça que vemos no Vaticano.

Foram mercenários, também, que garantiram a estabilidade das rotas e entrepostos comerciais britânicos entre os séculos XVIII e XIX. De facto, o exército da empresa privada britânica Companhia das Índias Orientais, que chegou a ter, em permanência, mais de 26 mil efetivos, tornou possível, com grande sentido de dever e lealdade (e muita barbárie) o Império "onde o Sol nunca se punha e o sangue nunca secava".

Somente nos finais do século XVIII, muito devido às guerras Napoleónicas, os Estados sentiram necessidade de manter Forças Armadas regulares e permanentes.

Muitos Estados impuseram o serviço militar obrigatório aos seus cidadãos como forma de tornar possível essa realidade.

E, neste regime, de Forças Armadas permanentes, mas obrigadas, mais ou menos bem treinadas, mais ou menos bem equipadas, conforme a disponibilidade e a riqueza das Nações, se passou quase todo o século XX, com 2 guerras mundiais e imensos conflitos que ceifaram a vida a milhões de militares.

É neste contexto que se cria o sentido pejorativo de mercenário.

Se uns davam a sua vida porque eram obrigados, com essa obrigação disfarçada dos ideais de "por Deus e pela Pátria" e as suas mais diversas variações, outros eram pagos para lutar, sem fidelidades, sem ideais, sem honra.

Em suma: os mercenários eram os "prostitutos" da guerra.

E esse preconceito perdura até hoje!

Mas os alvores das novas democracias participativas, uma aparente estabilidade global depois da queda do Bloco Soviético e o crescente conforto, educação e prosperidade dos povos ocidentais, assim como a crescente perda de sentido de conceitos como "Pátria" e "Dever" fez com que o ato de obrigar cidadãos a cumprir serviço militar se tornasse insustentável para o poder Politico nos países de direito democrático.

Por isso passou-se ao regime de Voluntariado em que só integra as Forças Armadas quem estiver disposto a isso, recebendo pelo seu serviço e podendo fazer carreira na instituição militar.

Neste aspeto a única coisa que diferencia um militar contratado de um mercenário é o facto do primeiro estar vinculado ao seu país e o mercenário não.

De resto são exatamente idênticos.

Mas com as sucessivas crises, a perda de influencia da instituição militar, a crescente influencia de um pacifismo ideológico e irrealista de movimentos woke e similares, mais o já referido declínio do sentimento de pertença a uma Nação (muito promovida pelos políticos em nome de ideais federativos europeus, por exemplo), fez e faz que os governos desinvistam cada vez mais das suas Forças Armadas, que os conflitos tenham cada vez mais origem em interesses políticos do que de defesa de algo e que, em consequência disso, a carreira militar se torne cada vez menos aliciante, prestigiante e atrativa.

Desta forma são cada vez menos as mulheres e homens que se voluntariam para ingressar nas Forças Armadas dos seus países.

Tal situação conduziu a reações que só vieram piorar a situação: a crescente diminuição dos critérios de admissão, a diminuição da exigência e da qualidade do treino e da instrução, o declínio da importância da hierarquia e do dever de obediência, a falta de meios materiais, de condições de trabalho, de fundos, de armamento adequado, entre muitas, muitas outras.

As Nações têm Forças Armadas com cada vez menos efetivos e esses efetivos são cada vez menos motivados, menos preparados, menos disciplinados e, logo, muito menos eficientes.

Para além disso as Forças Armadas estão cada vez mais politizadas, mais desprestigiadas, fazendo que os poucos que se destacam, os raros que são bons, aqueles que atingem a excelência, não se sintam reconhecidos, compensados, prestigiados e honrados.

Essa politização também se reflete no respeito que os militares têm pelas suas estruturas de comando em que, cada vez mais, as promoções, especialmente em quadros de oficiais superiores, se faz mais pela política do que pela prática militar, acontece mais nos gabinetes do que no campo de batalha, se conquista mais pela bajulação do que pelo exemplo (com honrosas exceções, claro está!)

Especialmente os militares das Forças Especiais, como os SAS britânicos, os SEALS americanos ou os excelentes Comandos, Operações Especiais e Fuzileiros portugueses não veem reconhecido o seu esforço, a sua excelência, o seu mérito, a sua dedicação.

Muitos deles, depois de anos a servir, a correr permanente risco de vida nas mais arriscadas missões internacionais, em que, na sombra, garantem que os políticos brilhem, são "despejados" na vida civil sem gratidão ou reconhecimento.

São militares treinados na excelência, preparados ao mais alto nível, instruídos no limite e, muitos deles, com experiências de combate que ainda os torna mais eficientes, mais resistentes, mais letais.

E para onde acham que, atualmente, vão esses militares quando os governos os "despejam" na vida civil?

Ou acham que são só médicos, enfermeiros, engenheiros e arquitetos que emigram, que procuram novas oportunidades, novas vidas, onde são mais reconhecidos, mais valorizados e muito, mas muito mais bem pagos?

Porque muitos militares também são, como se diz agora, quadros altamente qualificados.

Por isso aparecem cada vez mais empresas privadas militares, por isso são cada vez mais poderosas, mais influentes e mais letais.

E a situação chegou a tal ponto de contrassenso, que não tendo os Estados Forças Armadas para manter as operações que iniciaram, são os primeiros a contratar, a peso de ouro, essas empresas.

Os governos pagam exorbitâncias para contratar efetivos formados, treinados e instruídos por si.

Mas o pior disto tudo é que, sendo mercenários, não devem lealdade a nada nem ninguém a não ser a quem lhes paga ao fim do mês e, por isso, podem lutar para quem quiserem.

Assim é bem possível que as Forças Armadas de alguns países se vejam combatidas por elementos que já fizeram parte das suas fileiras, só que, agora, mais bem equipados, mais bem coordenados e comandados e muito, mas muito mais bem motivados e pagos.

Desta forma a culpa da crescente indústria das empresas militares privadas, do aumento exponencial de mercenários a soldo de quem mais paga, de verdadeiros exércitos conectados, não raras vezes, com o crime organizado e regimes ditatoriais, é dos países que não sabem aliciar, motivar e manter os melhores a servir o seu País.

Já dizia o grande Padre António Vieira, no longínquo século XVII "se cumpriste o teu dever e a Pátria te foi ingrata, tu, fizeste o que devias, ela, o que costuma."

Infelizmente nada mudou, antes pelo contrário.

Por isso a natureza dos conflitos está a sofrer uma mutação tão radical, por isso as Forças Armadas de países não conseguem vencer grupos privados, por isso o poder do dinheiro tem mais influencia nos conflitos, por isso, cada vez mais, a vitória pende para os interesses privados e não para o interesse do colético dos povos e das Nações.

Ou acham que foram mesmo elementos maltrapilhos, sem treino e mal-armados que atacaram Israel e que planeiam os ataques sistemáticos a posições israelitas, ou, então, que são elementos da tribo houthi no Iémen, sem qualquer treino ou conhecimentos militares, que fazem ataques com mísseis de precisão a navios mercantes no Mar Vermelho? Ou então quem acham que tem mantido Tomaz Maduro no poder e quem coordena a instabilidade interminável na região do Sahel?

Continuam na utopia inocente que não há elementos muito bem treinados e formandos, tanto ao nível operacional como tático e mesmo estratégico, envolvidos nestas e em muitas outras ações por todo o mundo?

Os políticos têm de se deixar de sonhos e de utopias pacifistas, tem que assumir que vivemos num mundo cada vez mais perigoso e beligerante e que não se negoceia a paz com quem veio para fazer a guerra.

E há cada vez mais países, grupos de interesses e associações privadas que estão dispostas a tudo para ficar cada vez mais influentes, mais ricas, mais poderosas. 

E, para esses, os fins justificam todos os meios.

E a razão da força é sempre mais eficaz, mais rápida e "descomplicada" que a força da razão.

No mundo da política real, assim como na natureza real, continua a vencer o mais forte, quem mais mata, não quem mais pensa.

Assim, se queremos defender, efetivamente, o que nos é valioso, aquilo em que acreditamos, como a liberdade, a democracia e os Direitos Humanos, é hora de começar a investir na defesa, a fortalecer as Forças Armadas, a dignificar e tornar atrativa a carreira militar, a saber manter os melhores para que, assim, possamos vencer os conflitos que, inevitavelmente e cada vez mais, seremos obrigados a travar.

Porque estamos a chegar a uma situação que o ontem já era tarde de mais.

E na vida, tal como na guerra, não há honra para os derrotados e não há vantagem na batalha perdida.


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