MENINO: QUERES SER MEU MESTRE?
Hoje o mais novo da casa, o Afonso, faz anos!
Em 2019 escrevi um texto, saído das entranhas, sobre este meu companheiro.
5 anos depois o Afonso está maior, mais maduro, já quase a entrar numa adolescência que se anuncia para breve!
Mas, ao ler esse texto que parece tão longínquo, constatei que continua tão atual como no dia em que foi escrito.
E o Afonso, no meio de tantas mudanças, de tantas transformações, continua, em suma, ele: o Afonso!
E eu tenho tanto, mas TANTO, orgulho nisso!
Ao meu companheiro,
Ao meu amigo,
Ao meu filho!
Parabéns, Afonso!!!!
Menino que brincas no jardim:
-Tu, sim,
Podias ser um mestre para mim!"
Sebastião da Gama
in "Canção Inocente"
O início da minha relação com o meu filho Afonso foi de pura e simples estupefação.
Começou, claro, quando a mãe dele, com aqueles imensos e sempre tão alegres olhos azuis rasos de lágrimas, me disse "Estou grávida!".
Confesso que não estava nada à espera daquilo.
Como já escrevi sempre quis ser pai.
Mas a paternidade era, para mim, assunto encerrado.
Já tinha a Kate que absorvia todo o "instinto" paternal que pudesse ter.
Um segundo filho, assim, caído do céu, vindo do nada, completamente inesperado....
Mas foram poucos os segundos de estupefação (e pânico, puro pânico, confesso), para logo dar lugar a uma imensa e completa alegria.
Depois, não perguntem porque, tive uma firme e inabalável certeza que ia ser pai de outra menina.
Já imaginava a Kate a partilhar bonecas e Pinipons com a pequena irmã que eu pensei chamar de Alexandra.
Duas meninas, o orgulho do Pai babado.
Mas, numa ecografia, a Irene disse: "Olha! É um rapaz!"
Rapaz!!!!!
Como um rapaz????!!!
Sai-me agora um "Pilas" logo quando eu já me estou a habituar a lacinhos, vestidos e bandoletes!!!!!
Mais um choque!
Isto prometia!!!
Depois o dia do nascimento.
Eu já sabia como era aquilo, por isso, se no parto da Kate estava sereno, neste nem se fala.
Um passeio no parque!
E lá fui para o Bloco, tudo a correr normalmente, a incisão, a prospeção, era só tirar o moço.
Mas... o rapaz não saía!
A Obstetra bem tentava, mas nada, nada. Ela bufava, metia a mão, puxava, mas não havia modo do puto sair, mesmo sendo cesariana.
Nestes momentos adorava ser uma besta ignorante e não saber nada de fisiologia, anatomia e essas coisas.
Eu sabia que ele tinha 3 minutos para sair antes que aquele ambiente que, durante 40 semanas, fora a sua casa e a sua segurança, se tornasse verdadeiramente mortal.
E os segundos passavam e nada...
Até que a Obstetra desistiu e o Pediatra entrou com tudo, mesmo com tudo, à bruta.
Três tentativas de força viril e lá saiu ele, roxo, inanimado, calado, como a respeitar o silencio tumular que imperava no bloco operatório.
Tentei ir ter com ele, com o meu filho, ver se estava bem, se estava vivo.
A Anestesista impediu-me: "Deixa-os trabalhar Rui"...
Nunca, jamais, senti tanto medo.
O medo mais puro e cristalino que um Homem pode sentir.
O medo de perder algo que supera tudo, que se eleva acima de qualquer interesse ou egoísmo, o medo de perder algo mais importante que nós próprios...
Depois... Um grito!
Não foi um chorar, foi um grito: Simples, límpido, curto, claro e conciso.
Nada mais do que isso.
A Anestesista sorriu, foi ver o que se passava. Voltou alguns momentos depois. "Vai lá ver o rapagão teimoso que ali tens".
Quando entrei na sala anexa ao bloco de partos o Pediatra já tinha começado o Teste de Apgar.
Por isso, a primeira vez que vi o meu filho, a primeira vez que vi o Afonso, ele estava de pé, firme e nobre, e caminhava para mim, olhando-me, sério e compenetrado.
Acho que esse momento definiu a nossa relação para sempre.
Um, perante um outro, de pé, como dois Homens.
Depois peguei-o ao colo... tal como à irmã recitei-lhe Camões, os Lusíadas, Canto Primeiro, estrofe 6: "E vós, ó bem-nascida segurança, Da Lusitana antígua liberdade, ..."
"Olá, Afonso, sou o Rui, o teu pai!"
Mas não era preciso dizer nada.
Aquele olhar firme e vertical, já nos tinha apresentado, já tinha fundido duas almas, já tinha dito tudo o que havia para dizer...
E depois... olhem... depois o Afonso começou a crescer e eu a crescer com ele.
É mesmo isso!
Quando digo que aquele nosso primeiro momento nos definiu é porque nunca me senti "pai" do Afonso, no sentido daquela paternidade protetora, em que ele depende de mim e que eu lhe ensino tudo o que o mundo tem para ensinar.
Somos mais "colegas", em que partilhamos, diariamente, a alegria de viver e de aprender vivendo.
Porque, com o Afonso, eu aprendo todos os dias!
Nunca ninguém me ensinou tanto como este rapaz!
Astuto, sério, com os seus "neurónios Ferrari" como lhe chama, o Afonso é o meu Mestre.
Em primeiro lugar o meu filho ensina-me a verticalidade.
A vida não tem exceções nem permite concessões.
O que somos, somos e mais nada.
A mesma seriedade que pomos no estudo devemos pôr numa brincadeira com carrinhos ou num jogo de bola.
Se fazemos é para ser bem feito.
O que gostamos, gostamos e o que não gostamos não gostamos.
Sempre!
Não importa os outros, não importam as circunstâncias: se não se gosta de bolo não se leva bolo para o colégio no dia de anos: leva-se folhado de salsicha que é o que adora; ou, por muito que goste de piscina não vai porque acha que "os meninos não estão a ser cavalheiros" e, ele, é sempre cavalheiro.
O Afonso não entende a exceção porque só sabe ser de um modo: ele.
E ele não tem exceções porque ele é ele todos dias, todas as horas, todos os segundos.
Quando me vejo a mudar o meu modo de ser e estar, de atuar e de pensar só para me enquadrar, inserir e agradar, penso nele, sério e circunscrito, como sempre ele é, a dizer "Não, não estás a ser cavaleiro".
O meu filho ensina-me, também, que não há limites.
No outro dia, perante um dos raciocínios mirabolantes dele, disse-lhe "Estás mesmo a pensar fora da caixa", ao que ele me perguntou "Que caixa Pai?".
Sim filho! Que caixa?
Não deve haver limites e fronteiras ao pensamento.
Tudo tem a ver com tudo porque tudo habita debaixo do mesmo céu, mesmo a nossa imaginação.
Foguetões e almas devem atingir a mesma velocidade para ir para o Céu; o Batman, se é uma personagem dos anos 50, pode, muito bem, ter sido amigo de Einstein e a Estrela da Morte do Star Wars também tem de obedecer à Leis da gravidade e da termodinâmica.
O nosso pensamento deve seguir sempre livre de todas as barreiras que, os outros e nós próprios, lhe impomos.
E, só assim, chegaremos à maravilha da descoberta.
E o Afonso descobre todos os dias.
E, nessa descoberta, ensina-me, também, a verdadeira igualdade.
Uma igualdade maravilhosa, feliz e pura como só ele a consegue.
Tanto é fascinante descobrir uma cor curiosa numa folha de outono, como fazer uma equação de segundo grau; tanto é maravilhoso entrar numa piscina de um hotel cinco estrelas como numa insuflável na casa de um amigo; tanto é fantástico conhecer um Chefe de Estado como um outro menino anónimo num parque de jogos; tanto é absolutamente fantástico o presente elaboradíssimo e caríssimo que a família lhe dá, como o brinquedo do Happy Meal do MacDonalds.
Em tudo se deve pôr o mesmo entusiasmo de viver, de descobrir, de conhecer e de aprender.
Sem distinções e hierarquias, sem valores e preços.
A vida é uma alegria completa e permanente.
Em tudo e assim deve ser.
O Afonso também me ensina a inconformidade permanente e total.
Não há pergunta que não possa ser feita, não há nada que não possa ser descoberto, não existe pensamento que não possamos atingir, tudo deve ser questionado, inquirido, descoberto.
"Porque sim" não é resposta para nada e "Não sei" é uma cobardia intelectual indesculpável.
Por isso nunca estudei tanto, nunca investiguei tanto.
E a idade não é desculpa.
Como quando pergunta o que é a Termodinâmica, o que é um Choque Anafilático ou como, afinal, se desativa um explosivo.
Ele tem de saber, ele tem de descobrir, porque o mundo, para ele, não tem fronteiras ou limites.
E para ele expandir os seus limites eu tenho de quebrar os meus e cada vez estudar mais, cada vez questionar mais, cada vez aprender mais, só para o acompanhar, só para lhe saciar a sede imensa de sorver o mundo todo.
E o Afonso, mais do que tudo, ensina-me a ternura.
Não é, como a irmã, uma criança efusiva, de grandes abraços e beijos.
O Afonso põe toda uma completa e imensa ternura nos pequenos gestos, nos quase impercetíveis toques, nos olhares profundos e nas palavras simples. Naquela cabeça as coisas valem por si e em absoluto.
Por isso quando diz "Gostei" é porque gostou muito, como, quando dá um beijo, põe nele todo o infinito amor que lhe vai na alma simples e inocente.
Muitos dizem que ele é demasiado sério, não é expansivo, quase introvertido.
Não concordo!
Simplesmente a ternura, o carinho e o amor dele são tão imensos e puros que se bastam.
Não é preciso provar nada, não é preciso demonstrar nada, não é preciso exteriorizar nada.
Basta que se sinta o que se sente.
Porque é isso, e de facto, só isso, que importa.
Por estas e outras tantas coisas, o Afonso, o meu filho, é o meu Mestre.
Este pequeno Homem, esta grande Criança, ensina-me, todos os dias e a todos os momentos, o que é ser, de facto, Homem; como tudo, afinal, é simples, límpido e puro, como tudo é belo, como tudo é maravilhoso a cada momento que passa.
E eu quero aprender, quero tanto aprender com ele esse olhar imenso que põe sobre tudo e sobre todos, também eu quero ser vertical, ilimitado, igualitário e inconformado e ser isso tudo envolvido na mais pura, absoluta e total ternura, essa imensa ternura por tudo e por todos que, afinal, é o que dá sentido a tudo isto.
Essa ternura que é o amor e a gratidão de viver e de estarmos e nos sentirmos vivos.
Também eu quero acordar, como ele, todos os dias, com o puro entusiasmo de ir viver uma jornada nova, em que novas coisas serão aprendidas e descobertas.
Tenho tanto, tanto ainda para aprender com o Afonso...
Por isso, a única coisa que peço, é ter muito tempo para absorver essa aprendizagem, para caminhar ao seu lado, para tentar responder às suas perguntas, ouvir os seus raciocínios, para ser, não o seu pai, mas antes o seu colega e companheiro nesta coisa fantástica e maravilhosa que é viver.
E agradecer, agradecer aos céus a honra, a sorte e o imenso privilégio deste meu Mestre me chamar de Pai, e de todos os dias me dar a mão para uma nova caminhada de maravilha, descoberta e amor.
Parabéns, Afonso,
Parabéns, meu Filho,
Parabéns, meu Mestre.