A RESPONSABILIDADE DO AUXÍLIO E O SISMO EM MARROCOS

12-09-2023

Normalmente o que deve ser dito não é dito, normalmente o que deve ser pronunciado é calado, ocultado, escondido.

Porquê?

Porque nos dias que correm há a obrigação de ser agradável, de não "chatear" ninguém, de não melindrar sensibilidades, de não ferir identidades ou minorias ou grupos ou interesses.

O rigor dos factos, a frieza das circunstâncias, a frontalidade da realidade é demasiado intensa para uma maioria que se habituou a viver num mundo ideal, sonhado e não existente.

É por isso que a crónica de hoje será censurada, insultada, banida por muitos.

Estou ciente disso.

Sei das consequências e assumo-as.

E feita a ressalva inicial vamos a isto.

Mais uma vez a natureza impôs a sua ordem, os seus mecanismos e os seus normais processos.

E a terra tremeu em Marrocos.

As frágeis aldeias e vilas no sopé do magnifico Atlas, na zona de Marraquexe, sofreram um abalo intenso de aproximadamente 7,2 na escala de Richter (segundo o The Times).

Mais de 2000 mortos, milhares de feridos e desalojados até ao momento e ainda não se conseguiu chegar às localidades mais remotas.

E eis que o espetáculo começa.

Sim!

O espetáculo triste, degradante e ignorante das televisões, das redes sociais e de tudo o que uma sociedade de intenções vazias e ignorâncias vincadas é capaz.

Em primeiro lugar a especulação das televisões e outros órgãos de comunicação social.

Imediatamente atribuem-se culpas e fazem projeções.

Estaria Marrocos preparado para esta situação, estará Portugal preparado para este tipo de evento, como reagiríamos, quais seriam as consequências?

E chamam-se peritos depois de peritos, comentadores depois de comentadores, a maioria sem saber o que diz, não acrescentando mais do que o óbvio, e, pior, a maior parte, lançando alarmismo irresponsáveis numa população que, com este tipo de informação, fica cada vez mais desinformada e ignorante.

Porque a verdade, de facto, é que Portugal não está preparado para um sismo desta magnitude, assim como não estava Marrocos, assim como não está qualquer país.

É impossível termos a vida que temos, termos o nosso dia-a-dia a decorrer como decorre se estivéssemos sempre preparados para enfrentar um sismo desta magnitude.

Nenhum país está preparado, nem pode estar sob pena de inviabilizar completamente o que chamamos de vida normal, para sismos com magnitude superior a 6.

Por exemplo: Portugal sofre de uma grave crise de habitação em que mesmo cidadãos com vencimentos médios e até elevados não conseguem ter acesso à habitação condigna devido aos seus preços. Já alguém perguntou quão mais grave esta situação seria se as habitações tivessem que seguir padrões de construção "antissísmicas" como defendem os "especialistas" da nossa praça? Quantos impostos teríamos nós mais que pagar para ter forças treinadas e prontas em permanência para enfrentar um evento desta magnitude como exigem os "comentadores" que nestas alturas sempre aparecem?

Estão os cidadãos dispostos a pagar esse preço, podem os cidadãos pagar esse preço?

Diz-se que a vida humana não tem preço.

Mas a verdade é que tem.

Se tudo neste mundo tem um custo e tudo tem que ser pago, então tudo tem um preço, até a vida.

E na hora de pagar alguém tem de o fazer.

E estamos nós preparados a pagar o preço das nossas utópicas exigências? Estamos preparados para o aumento exponencial do preço da construção e do aumento da carga fiscal para suportar as medidas que, nestes momentos, todos exigem e reclamam?

A população é informada do custo e impacto que essas medidas teriam no seu dia-a-dia, nos seus orçamentos, nas suas contas?

Uma informação correta, consciente e responsável informa com clareza, transparência, realismo e na totalidade do assunto abordado, dos benefícios e malefícios, das vantagens e desvantagens, dos lucros e dos custos.

Por isso, quando exigem a governos e autoridades medidas, leis, forças especiais e meios digam também quem vai pagar tudo isso.

Em segundo lugar é preciso, em definitivo, assumir e denunciar aquilo que eu chamo o "egoísmo do altruísmo".

E eis que, segundos depois do sismo todos querem ir, todos estão preparados para ir, todos anunciam a sua ida para o que, chamam com pompa, "a linha da frente".

Adorei a expressão "projetar forças" que agora todos utilizam. Mais um jargão de alguma mente iluminada!!! Mas funciona muito bem, melhor ainda se combinada com outras como "linha da frente", "major". Fica bem, soa bonito e, dito com expressão séria e circunscreta, até aparenta algum saber.

Temos de ser frontais: a esmagadora maioria das pessoas que se afirmam prontas para ir e que iriam mesmo para as zonas de impacto se tivessem essa oportunidade, não sabem o que iriam fazer, como fazer, porque fazer.

A maioria das pessoas é movida (embora, acredito, inconsciente) por esta fugacidade de protagonismo e relevância que, nos dias de hoje, todos têm uma urgência desesperada de ter.

Promovemos tanto uma sociedade de igualdades que todos temos uma imperiosa necessidade de sermos diferentes.

E alguns tentam fazê-lo pelo altruísmo, pelo serviço, pela entrega.

Muito nobre?

Na teoria sim, na prática, em si, contraproducente!

Porquê?

Porque não basta querer fazer, tem que se saber o que se faz, como se faz, porque se faz.

Prestar auxílio a vítimas em contextos como o sismo de Marrocos é trabalho para pessoas especializadas, formadas, treinadas e com capacidade, física e mental, para o fazer bem feito.

E a esmagadora maioria dos voluntários que nestas alturas surgem de mochilas prontas e botas calçadas não tem nenhuma destas condições.

Não sabem a língua, não conhecem os costumes, não tem resistência física para trabalhar em locais que podem ser muito agrestes (como é o caso das escarpas do Atlas), não tem a resistência mental para suportar o que iriam ver e presenciar. Já para não falar de enfrentar o frio, o calor, a falta de água, o ter que dormir no chão, a falta de condições de higiene, do mais básico.

Boas intenções não chegam!

É preciso ser efectivamente capaz de cumprir a missão!

Muitos desses voluntários, em rigor, iriam atrapalhar mais do que ajudar, consumindo recursos, ocupando instalações, alocando meios para a sua manutenção no terreno sem proveito nenhum para as vítimas ou para a situação em si.

Por isso o Reino de Marrocos, provando que sabe o que faz, restringiu tanto o acesso a ONGs e organizações que tais, fazendo depender de um pedido a ida para o terreno.

Em Fevereiro deste ano, na Turquia, estava uma grande equipa marroquina. Viram o que viram. Provam agora que aprenderam e não querem no seu país o que viram na Turquia: desordem, inutilidade, um gigantesco desperdício de recursos, gente que não fazia nada, outras que faziam mal e muitas, mas mesmo muitas selfies e reels e stories e fedds...

Por isso há tanta gente hoje desiludida, frustrada e alguns, até, furiosos.

Porque lhes tiraram a oportunidade da bela selfie e da tão emotiva publicação nas redes sociais.

Marrocos pede apenas a ajuda, não que precisa, mas que pode receber e operacionalizar. Porque precisar precisa muito de quase toda a que podermos fornecer. Mas depois há tudo o resto: onde alojar, como alimentar, que meios alocar para que possam trabalhar, etc, etc, etc.

E mais vale ter pouco, mas a gerar resultados do que muito e sem eficácia, como aconteceu na Turquia, Moçambique, Ruanda, etc, etc, etc.

Que podemos então nós fazer?

Podemos, por exemplo, em vez de exigir irrealismos imediatos e utopias salvíficas começar pela base.

E qual é essa base?

É a educação para a segurança, desde a infância, é a promoção do humanismo consciente e sustentado, é a criação de verdadeiras regras e normas para a existência de associações e ONGs dedicadas à intervenção em emergências e catástrofes que garantam, de facto, que estão preparadas para uma ação correta, efetiva e, muito importante, continuada. É criar um sistema de avaliação e auditoria dessas organizações para garantir a sua prontidão, a sua capacidade e sua eficácia.

Porque, situações destas, não é ir lá, tirar umas fotos, ficar uma ou duas semanas e voltar de "coração cheio".

É garantir que o auxílio continua a ser dado, a fluir, durante meses e até anos. Porque nada pior do que auxiliar e depois desaparecer, prometer e depois não cumprir, mostrar e depois retirar.

E é muito assim que se sentem as vítimas deste tipo de catástrofes: num primeiro momento todos vão, todos dão, todos prometem.

Recebem carinho, algum auxílio, até alguma esperança.

Mas depois, 3 ou 4 semanas depois, todos voltam à sua vida, ao seu "ocidente", com o coração cheio e milhares de fotos e as vítimas, essas, para além da vitimização inicial, ficam com a imensa sensação de abandono, de desilusão, de frustração.

Por isso, cada um, antes de desatar a ir prestar auxílio nestas situações, deve perguntar, com muita frieza e altruísmo, se é necessário, se é capaz e se está disposto a fazê-lo como deve ser feito.

Cada um deve avaliar se vai, mesmo, pelas vítimas ou por si mesmo, pela experiência, pelo conforto próprio de se sentir útil, que, embora nobre, nestas situações, é contraproducente.

Por muito que nos custe admitir o melhor modo de alguns fazerem algo de útil nesta situação é não fazerem rigorosamente nada.

E já agora…. Na vossa cidade, no vosso bairro, na vossa freguesia, não há pessoas para auxiliar, não há idosos a precisar de cuidados, crianças a necessitar de auxílio, de roupa, de livros, de comida, ou, simplesmente, de alguma atenção, de uma palavra amiga, de um insignificante mas tão importante sorriso?

Pois…. Isso não dá selfies boas, isso não é estar na "linha da frente", isso não "enche o coração" ….

Há um conceito militar que afirma que não há linha de frente eficaz se não existir uma boa força de retaguarda.

Comecem, primeiro, a trabalhar numa boa retaguarda e depois, e só depois, comecem a pensar em "ir para a frente".

Comecem pelo básico e depois dediquem-se ao assessório, comecem pelo simples e depois evoluam para o complexo, sejam realistas, pragmáticos, trabalhem com o que têm, primeiro façam o possível para depois sonharem o ideal.

Deixem de ser irresponsáveis, inconsequentes, incoerentes.

Isso é tudo o que as vítimas não precisam.

E agora podem-me banir, insultar, injuriar.

Será assumido como elogio.